quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A poda da flor


Há alguns meses tive o desprazer de conhecer a maldade humana, em um ambiente em que as pessoas que ali vão procuram amparo e cura,  do corpo é verdade, mas causada na maioria das vezes por feridas da alma.
Todas ou a maioria das pessoas quando procuram atendimento médico, em uma unidade de saúde, seja ela qual for, hospitais ou postos, acreditam encontrar pessoas boas e que estão dispostas a ajudar como profissão, no entanto isso não é verdade, infelizmente.
À procura por uma profissão de cuidado é algo supremo e mágico, no entanto os seres humanos com o passar do tempo esquecem dessa escolha, dessa chama, e permitem que sentimentos mesquinhos tais como inveja, ciúmes e dúvidas transformem essa vontade de ser útil, na vontade de machucar e ferir o próximo.
Fui golpeada por alguém que sempre pareceu ser amigo, gentil e zeloso pela sua profissão, engano meu? Talvez, mas o maior engano é enganar a si mesmo. Abalada e triste fui convidada a me retirar do meu próprio jardim, algo que conquistei, amei e me dediquei desde o primeiro momento... destruído e ferido por mentiras e mal caratismo.
Um tempo curto se passou e pude voltar a minha “casa”, quebrada e remendada. Aos poucos tenho tentado reconstruir cada tijolinho novamente. Com a ajuda de quem realmente se importa.
Agradeço aqueles que sempre me ajudaram a construir cada peça, cada pedaço e ainda mais aqueles que continuam a construir uma equipe, uma saúde melhor apesar do desgaste.
Deixo aqui a minha indignação com os serviços de saúde que a cada dia procuram mais números, mais metas, mais dinheiro e se esquecem da pessoa, da alma, de cada um que entra no serviço, que vai a procura de um afago, carinho, escuta, cura. E ainda aos profissionais que procuram a essas profissões somente por dinheiro...
Quantas pessoas se entregam ao voluntariado para se encontrarem ou sentir-se verdadeiramente úteis, à procura de algo maior, a essência, o transcendental... E nós temos o prazer de a cada dia poder sentir isso, como trabalho, como profissão, como dom...
À todos aqueles que mantém a alegria e verdade na escolha.


Meu jardim - Vander Lee

"Tô relendo minha lida, minha alma, meus amores
Tô revendo minha vida, minha luta, meus valores
Refazendo minhas forças, minhas fontes, meus favores
Tô regando minhas folhas, minhas faces, minhas flores

Tô limpando minha casa, minha cama, meu quartinho
Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho

Estou podando meu jardim
Estou cuidando bem de mim"

domingo, 7 de agosto de 2011

O Cravo brigou com a Rosa? O Cravo continua a amar a Rosa? O Cravo e a Rosa vivem, compartilham, amam...

Dona Rosa e Sr. Cravo se apaixonaram muito cedo, eram adolescentes de famílias humildes e muito tradicionais, e logo correram os preparativos e o casório.
Casaram-se e tiveram uma vida feliz, Sr. Cravo trabalhava arduamente dia após dia, e D. Rosa cuidava da casa, logo engravidaram e nasceu o primogênito e dois anos após nascia o segundo filho.
Os meninos eram a vida da casa, da família, de seus pais...
O tempo passou, as crianças cresceram, e o casal foi mostrando os primeiros sintomas da velhice. Sr. Cravo diabético de longa data, iniciou sintomas claros de demência que aterrorizava a família: Como um homem trabalhador, tão inteligente pode ficar assim? A indignação foi tanta, que a aceitação ficou pequena. No entanto a cada dia os sinais ficavam mais claros e o diagnóstico evidente, Doença de Alzheimer.
Apesar dos esforços, a doença degenerativa e progressiva não se abalou e aos poucos foi tomando o cérebro do Sr. Cravo, antes tão ávido por conhecimento.
Paralelamente D. Rosa foi apresentando tremores, antes diagnosticado como essencial, mas que aos poucos tornaram-se frequentes e o diagnóstico foi preciso, Doença de Parkinson.
- Meu Deus o que será de nós? Nossos pais estão envelhecendo, estão doentes, estão indo embora... O que fazer? Como cuidar? Como continuar a amar? Eles mal nos reconhecem... Quem já ouviu falar de um casal um com Alzheimer e outro com Parkinson?
Neste contexto conheci essa família, D. Rosa e Sr. Cravo moram sozinhos, na casa que sempre foi deles. E os filhos, por perto.
D. Rosa é uma dessas avózinhas amáveis, que te cativam pelo olhar. Serena e tranquila sofre apenas com a “ausência” do marido. Sr. Cravo traz no rosto marcas de uma vida difícil, áspero e amargo em um primeiro contato, que aos poucos se transforma em um homem carinhoso, capaz de contar agradáveis estórias e vitórias, e no entanto não se lembrar do próprio banho.
Eu, no meu humilde olhar não entendia como eles podiam viver daquela maneira, mas viviam, e de acordo com as suas limitações, bem. Na primeira visita a cuidadora  causava ciúmes e estranheza  a D. Rosa, isso mesmo ciúmes, D. Rosa tinha ciúmes da cuidadora com o marido, e isso foi criando circunstâncias de tremendo descontrole físico, psíquico e metabólico para ambos. Mas logo a cuidadora foi substituída por uma de mais agrado de D. Rosa.
A nova cuidadora, uma flor especial, conseguiu trazer harmonia e tranquilidade, apesar do Sr. Cravo continuar brigando e achando que é D. Rosa quem deve cuidar dele, ele a aceita melhor.
Às vezes eles caem, se machucam, aumentam a pressão, aumentam a diabetes, choram, regridem, progridem, amam, sentem raiva, mas vivem... e são amados, sem restrições, sem porquês, sem pena... simplesmente vivem e são amados...

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Rubem Alves

“Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim…” Sou esse intervalo, esse vazio – de um lado, o meu desejo (onde foi que o perdi?); do outro lado, o desejo dos outros que esperam coisas de mim. Não, não são os inimigos que me impõem o intervalo.  Os desejos que me pegam são os desejos das pessoas que amo – anzóis na carne. Como tenho raiva do Antoine de Saint-Exupéry – “tornamo-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos...” Mas isso não é terrível? Ser responsável por tanta gente? Cristo, por amar demais, terminou na cruz. Embora não saibamos, o amor também mata.
Então, abandonar o amor? Não. Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de “abrir mão” - a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial.

Tecnólogos em Medicina

Há aproximadamente dois anos sou preceptora de internos de medicina na área prática da saúde pública, em estratégia de saúde da família. Quando iniciei no projeto era tudo novo e motivador, pelo fato de ensinar práticas diárias e rotineiras a pessoas ávidas por conhecimento, o saber, o transformar-se em médicos. Como esperado foi intenso, eu estudava bastante para não deixar dúvidas, aplicava casos inventados e reais, listas e mais listas de medicamentos, indicações e contra-indicações, e sempre tentando ressaltar o lado “humano”, diante a uma realidade pobre e insalubre. E como retribuição eu recebia o ar encantado, os olhos da descoberta, e milhares de perguntas e mais perguntas e mais pesquisas e trabalhos científicos que me acrescentaram em muito. Mas o tempo foi passando e a avidez pelo conhecimento foi cada vez mais diminuindo, o que muito me entristece.
Alguns procuram o conhecimento, estudam, se dedicam, mas nem se lembram quem é o doente, ou o que ele representa na sua família e comunidade, “é só um pobre que serve pra gente estudar”, pasmem, mas já ouvi isto. Outros não procuram nem o conhecimento e nem o interesse ao próximo, talvez tenham a falsa impressão de que a medicina traga riqueza. Triste.
Essa semana tive uma conversa/aula com um psiquiatra, e discutíamos sobre a saúde pública nesse país, e em um momento eu disse: Nossa a saúde mental deste país está no limbo, fui rebatida prontamente: não, está no inferno. Em outro momento eu disse: mas pediatra e psiquiatra são espécies em extinção, fui fervorosamente rebatida outra vez: não, médico é uma espécie em extinção, porque os “médicos” que se formam hoje em dia não se interessam nem pela doença e nem pelo doente, talvez sejam tecnólogos em medicina. Pensei... Repensei... E cá estou dividindo essa angústia...
Meu tempo de trabalho não é muito, mas percebo que já se parece muito com a de médicos mais experientes, de que as faculdades parecem estar preocupadas apenas com o dinheiro da mensalidade, e o pior, formam profissionais com esse mesmo ideal.
Lembro-me como a medicina era um sonho para mim e para muitos dos meus amigos no colégio e cursinho. Lutamos e estudamos muito, alguns conseguiram, outros ficaram pelo caminho. E tentamos desde então fazer o melhor, mesmo que com um “jeitinho brasileiro” de tentar de tudo com pouco, às vezes muito pouco.
Sei e sinto na pele a escassez de materiais, equipamentos e medicamentos, locais de trabalho sem ventilação, salário baixo, e falta de pessoal. E há vezes em que realmente penso em sumir e abandonar tudo... Mas aí me lembro do todas as carinhas que consegui ajudar, algumas realidades que pude elucidar uma melhora, bebezinhos já crescidos que dividem os primeiros passos comigo, crianças que voltaram à escola, raros adolescentes que estão na faculdade... Enfim sinto e vejo o quanto vale à pena. Sim, a medicina traz riqueza, grandeza, mas de alma e não de dinheiro.
Queridos colegas e futuros colegas, não desistam da essência que levaram vocês a escolher essa profissão, não vamos deixar que a correria/capitalismo destrua o nosso lado sensível, o poder e o dever de enxergar o outro.
Dedico aos meus amigos médicos e primeiros internos (Dani e Pedro) que fazem a diferença onde quer que estejam, pelo carinho, pela vontade, pelo caráter, pelo ser médico.

domingo, 29 de maio de 2011

Gibran Kahlil

"Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas quando parte, nunca vai só nem nos deixa a sós. Leva um pouco de nós, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, mas há os que não levam nada”. 

Bolo de aniversário

Essa estória nasceu de forma inesperada... 
Com um bolo de aniversário...
Julia era mais uma das tantas mulheres que iniciam o pré-natal na unidade de saúde. Já na terceira gestação preocupava-se com o fato de mais uma cesárea e mais um filho, e o que tudo isso representa na vida de uma mulher. Aflita, por muitas vezes quis mudar de médico e até agrediu verbalmente alguns funcionários. No entanto, com jeitinho e cautela fomos conversando, brincando, crescendo e o vínculo foi novamente se refazendo.  Por volta dos quatro meses de gestação Julia já estava mais feliz e contente com os serviços prestados... O pré-natal corria bem, a evolução do feto e das pessoas a sua volta caminhavam com alegria e afeto.
Com a proximidade do fim da gestação, Julia foi encaminhada ao PA Obstétrico para que fosse realizada/agendada a cesárea, mas por motivos alheios a nossa vontade a mesma foi mal tratada e mal avaliada... E com isso começamos uma corrida contra o tempo: uma vaga para um parto cesáreo com laqueadura se possível...  Conversas tensas e mal resolvidas aconteceram por dias, até que após muita insistência fomos agraciados com uma vaga em um município vizinho. Mas como pode ser? Como vamos encaminhar para outra cidade? Isso é um absurdo, em uma cidade deste tamanho? Enfim, foi assim... E tudo correu bem, Julio nasceu forte e com uma energia tranqüila, apesar da correria...
Julia era só sorriso e orgulho quando levou o lindo garoto para conhecermos e agradecer o nosso trabalho... E naquele instante toda a loucura pela vaga, os insultos superiores, palavras mal ditas anteriormente, ficaram para trás e tudo tinha valido à pena.
O bolo de aniversário?
Essa semana Julio fez um ano de vida e quem ganhou o presente fomos nós, ganhamos uma festa de aniversário na unidade em agradecimento ao nosso envolvimento/trabalho do pré-natal até hoje, na puericultura...
Alguns pequenos gestos marcam a nossa estória, profissional e pessoal, e esperamos que o nosso trabalho também possa marcar de forma positiva a vida dessas pessoas...

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Mahatma Gandhi

"Não existe um caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho."
  


O renascimento do Girassol


Sr. Girassol casado a pouco mais de 5 anos fazia a alegria de sua rua nos finais de ano, era como ele dizia: o pirotécnico da festa. Seu décimo terceiro era reservado para essa causa junto a distribuição dos presentes das crianças e, neste fim de ano em especial a festa deveria ser perfeita - ele aguardava e comemorava a chegada de seu primeiro filho.

No entanto sua preparação foi interrompida, durante a festa de fim de ano da empresa um acidente ocorreu; por uma brincadeira o Sr. Girassol escorrega e bate a cabeça na piscina perdendo a consciência. As pessoas muito assustadas chamam ajuda e dão inicio a uma nova fase na vida do Sr. Girassol.
Na correria e polidez do hospital a família só recebe a notícia de que o trauma raquimedular é grave, delicado e na maioria das vezes irreversível. Muitas rezas, amor e união trazem novamente a esperança.  Sr. Girassol é operado e levado a UTI, local que se tornou seu abrigo por longos 6 meses. Enquanto o organismo do Sr. Girassol se recuperava, a vida tomava seu rumo, seu filho vinha ao mundo de uma forma aguardada e angustiada, o que de alguma maneira fez com que o Sr. Girassol abrisse os olhos e chorasse por tudo aquilo que tinha perdido.
Uma nova fase se faz presente, a angústia da perda de movimentos e a alegria do ganho de uma nova vida.
Neste momento conheço Sr. Girassol, um homem jovem de 42 anos, com muita dor, amargura e tristeza nos olhos: - Não fique assim Sr. Girassol o pior já passou, agora o importante é não desistir, fazer a fisioterapia, curtir a família... - Doutora como? E o meu filho? Eu nem posso segurá-lo, quem vai criá-lo? Eu nem o vi nascer, quem sou eu? E as minhas pernas, quando elas vão voltar a me obedecer?
Claro que eu não tinha resposta para nenhuma daquelas perguntas, e vê-lo chorar me fez ainda menor diante da grandiosidade e gravidade dos acontecimentos. Uma esposa antes muito bem amparada que agora tem 2 nenês para cuidar e o pior sem saber como e sem meios financeiros para muita ajuda e, do outro lado um homem que há pouco tempo tinha força, emprego, alegria e movimentos e que agora  se pergunta porque não morreu já que era para se tornar um peso. Fiz o que qualquer outro médico faria: medicação para dor, fisioterapia, psicólogo, apoio para a esposa e o recém-nascido.
Ao encontro a estória a minha vida estava em um momento tumultuado de trabalho frenético, de segunda a sexta em horário comercial e plantão aos sábados à noite e domingo dia, sem parar, sem pensar ... Neste dia voltei para casa com a certeza de que a vida é realmente muito curta (E os meus pais? Meu namorado? Minha família? Minha vida?) e desisti de todos os plantões.
A caminhada do Sr. Girassol estava apenas começando, logo a fisioterapia se iniciou com melhora importante dos membros superiores e tronco, dieta para não exceder no peso, psicologia para lidar com os obstáculos (mesmo que às vezes empurrado), aprender a tomar “banho”, improvisar e surpreender-se  brincando com o filho, reaprender a ser companheiro e não paciente da esposa, conquistar a locomoção com a cadeira de rodas e deixar o preconceito para trás...
As barreiras  realmente não eram fáceis, dependia dos vizinhos para dirigir seu próprio carro e corpo, as milhares de consultas nos hospitais e em casa, a burocracia de perícias e mais perícias para conseguir o auxilio doença, a guerra com o plano de saúde para adquirir o home care, as dívidas que só aumentavam, os olhares penosos e preconceituosos das pessoas, a falta de brilho no olhar...
Um ano se passou e o ano novo chegou novamente para tristeza do Sr. Girassol que neste ano está lúcido e não poderá organizar o que sempre fez. A família não se intimidou; organizou uma ceia linda, com carinho e muito amor.  
A madrugada já ia caindo quando o Sr. Girassol criou coragem e se deixou colocar na garagem para ver a rua, momento em que a maioria dos vizinhos o estava esperando para brindar e agradecer por todos os anos em que ele tinha feito a alegria de todos, muito educado...  agradeceu, conversou e brindou, mas rapidamente entrou resmungando sobre a própria sorte e sobre as pessoas e em meio a novas perspectivas logo adormeceu. No dia seguinte após o almoço uma multidão o chamava no portão, era uma romaria que chegara de Aparecida e parou ali para desejar-lhe um bom ano, melhoras e uma prece de fé e carinho, neste instante Sr. Girassol não teve dúvidas, dor ou medo se pôs a rezar e a chorar...
Hoje o Sr. Girassol voltou a se alegrar e sorrir. Valoriza a vida e a família como nunca. Tornou-se companheiro da esposa, amigo dos amigos, aprendeu a caminhar sobre 2 rodas e se diverte e aprende junto com seu filho, lado a lado a alegria e força de um, contagia e ensina o outro.
E eu reaprendi a ver ou entender a vida que está aí para ser degustada, provada, sentida, enfim vivida, sem rodeios ou demora, aceitando as adversidades, tentando ser feliz!

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Stephen Hawking



Stephen Hawking, físico teórico e cosmólogo britânico e um dos mais consagrados cientistas da atualidade, é  sabidamente portador de ELA há mais de 40 anos, muito além da sobrevida média da doença, entre 2 e 4 anos. Acredita-se que ele seja portador de uma variante menos agressiva de ELA.

domingo, 30 de janeiro de 2011

A beleza das flores (parte 2 - a cuidadora)

Dona Tulipa é uma peça fundamental nesta estória, tanto que quis dedicar esse espaço a ela e também para que vocês conheçam essa flor, que parece já ter nascido pronta, que merece a cada dia maior admiração.
Dona Tulipa é uma mulher forte, de aproximadamente 45 anos que nunca teve o privilégio de poder desanimar na vida, casou-se muito moça e teve seus 3 filhos de forma alegre, apesar das suas dificuldades econômicas, sempre trabalhou fora para ajudar nas despesas em casa.
Conheci D. Tulipa assim que fui visitar D. Rosa pela primeira vez, ela muito calmamente me explicou que estava ali há alguns anos e que desde então eram grandes amigas e que poderia me ajudar no que eu precisasse. E assim aconteceu, conforme eu ia fazendo as perguntas elas conversavam em minha frente como se estivessem sentadas em um café só para distrair o tempo (recapitulando: D. Rosa era portadora de ELA e a única coisa que ela conseguia movimentar em seu corpo eram os seus olhos e alguns grunhidos ocasionalmente), me lembro da feição de D. Tulipa quando deve ter visto a minha cara embasbacada diante de tal situação, e ela apenas me acalentou: Logo a senhora também aprende... Pensei, será?
Diante da situação alarmante e triste de D. Rosa quis saber detalhadamente tudo, como era a família, como ela interagia com essa família e pude perceber que elas mantinham olhares misteriosos sobre alguns assuntos, de forma diferente e alegre elas até se divertiam.
Na perspectiva dessa personagem mágica os acontecimentos eram apenas parte da vida, e que ela estava ali somente para ajudar no que fosse necessário e como dádiva ainda tinha ganhado uma amiga, uma confidente. Assim, sem sofrimento e sem pesar.
O meu interesse sobre o caso de D. Rosa e o medo de D. Tulipa adoecer diante da situação, nos aproximou... Dona Tulipa era o anjo de D. Rosa e eu queria ser o anjo de D. Tulipa, solicitei exames, insisti a ela em um tratamento psicológico e ela tranquilamente apenas me respondia: não é necessário, eu nasci para essas circunstâncias.
Com a chegada dos exames, e alguns resultados desfavoráveis, fui até a casa de D. Rosa, mas para visitar desta vez D. Tulipa, lá chegando um susto, aquele ser calmo e alegre estava em desespero, aos prantos...  Aos poucos “conversando” com D. Rosa e D. Tulipa fiquei sabendo que sua filha “especial” tinha desaparecido e que a policia a tinha achado e a levado para um hospital, pois é acreditem, aquelas lágrimas presenciadas eram de agradecimento e não de desespero, ela parecia jamais se desesperar... E o mais surpreendente para mim, eu e D. Rosa tínhamos trocado palavras sem intérprete...
Dona Tulipa em horário comercial era cuidadora de D. Rosa e em casa era cuidadora de sua filha, a qual apresenta uma deficiência mental sem cura para a medicina até o momento.
Atordoada com a notícia apenas me indagava: como ela era tão forte, como ela conseguia com tanta serenidade e alegria, sem nunca esbravejar ou culpar o mundo pelas suas mazelas, assim como nós seres humanos atacados fazemos?
Aos poucos fui tentando fazer com que essa rocha, cuidasse melhor de si assim como cuidava de todos ao seu redor, e ela aos poucos foi me ensinando como a vida pode ser caprichosamente remendada em pequenos retalhos ora de alegria, ora de tristeza, ora de ser cuidadora e ora de se permitir ser cuidada...  Formando uma colcha, uma corrente de solidariedade, determinação, aprendizado, amor e alegria.
Dona Tulipa hoje é cuidadora apenas de sua filha, mas está à procura de um novo emprego que a deixe mostrar como se pode fazer a diferença quando se faz com amor e carinho.
Essa lição não é fácil, mas quando se presencia nos toca de forma transformadora.

Fernando Pessoa

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem.
Por isso existem momentos inesquecíveis e pessoas incomparáveis".

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A beleza das flores (caso de ELA)

Rosa era uma dessas mulheres tradicionais, casada e feliz aos 30 anos com um filho, a espera do segundo. Dedicava-se a seus afazeres domésticos e sua família, no entanto durante a gestação começou a apresentar fraqueza nas pernas, a qual acreditou ser cansaço do seu próprio estado. A espera de uma nova vida lhe dava forças e alegria para trilhar novos caminhos...
A felicidade era completa quando a sua princesinha veio completar a família. Rosa então passou a se dedicar ainda mais aos filhos e marido, tudo era harmonioso conforme planejara. Mas com o passar do tempo a fraqueza em suas pernas limitava as suas atividades diárias, momento em que foi levada a uma consulta médica. O médico por sua vez solicitou os exames de rotina e deu lhe a noticia que estavam todos normais e a tranqüilizou liberando-a com vitaminas.
O tempo caminha e a persistência da fraqueza começa a incomodar agora toda a família. Rosa foi então levada para um centro mais especializado, foi submetida a exames mais específicos e dolorosos, era notável a progressão de tal fraqueza, agora acometia também os membros superiores e a pobre princesinha quase caía de suas mãos quando a segurava...
Após alguns exames foi notado perda da força e da musculatura de Rosa, e o diagnóstico por exclusão foi lançado: ELA (Esclerose Lateral Aminiotrófica). Mas o que é isto? Como se pega? Tem cura? E a minha bebê?  É uma doença degenerativa, blá, blá, blá... Momentos de angústia e tristeza se seguiram ao saber que tal diagnóstico vinha carregado de incertezas da medicina e com os piores prognósticos possíveis.
A família mobilizada não desanimou e a levou para fisioterapia, centros de referência, fonoaudiólogos, igrejas e rezas...
Mas o tempo passa e, as fraquezas e perda de movimento só progridem e chegam a atingir a fala.
Momento este em que me deparo com D. Rosa: Mas como pode ser? Como ninguém fez nada por essa mulher? E essa criança (a filha mais nova nessa época já tinha 4 anos), como elas interagem? Onde está esse marido? E os remédios? Mas ela não tem uma fisioterapeuta? Meu Deus, o que é ELA???
Pois é; voltei para casa arrasada e destinada a achar a cura para a ELA... Doce ilusão da ignorância: - a condição de impotência frente à doença é matéria que não se ensina nos bancos da faculdade e tive de aprender sozinha, ora aos prantos, ora olhando para aqueles olhinhos que me respondiam tudo, ou quase tudo.
Diante do inconformismo, levei até D. Rosa fisioterapeuta, fonoaudióloga, psicólogo, enfermeiro, enfim tudo que estava ao meu alcance; E pela primeira vez entendi o que era o trabalho multidisciplinar e o olhar de cada profissional num todo, a fim de gerar uma “qualidade” de vida para aquela paciente.
Fizemos placas de comunicação, colocamos os filhos em um maior contato com a mãe e em acompanhamento psicológico, apertamos os laços entre a família, ensinamos ou fomos ensinados pela cuidadora  e conhecemos o Sr Cravo.
Um ser humano à parte, dedicado a esposa e aos filhos de uma forma incansável, para ele não era necessário placas de comunicação... pelo olhar eles conversavam. E não é força de expressão, eu a presenciei “dizendo” a ele onde estava os exames ao quais eu necessitava, realmente impressionante e comovente.
Quando tudo parecia contornado e meu coração se aquietava a maior e louca notícia: D. Rosa está grávida. O que? Como? Não entendi... Era verdade!
A ELA mantém a sensibilidade, os esfíncteres e a libido, duvida? Pois é, eu acredito!
Inconformada, desanimada e enfurecida fui visitar D. Rosa, lá chegando tudo o que eu na minha pequena alma sentia desapareceu ao ver seus olhos... D. Rosa estava completamente feliz, a possibilidade de gerar uma nova vida, fez florescer nela uma nova vida.
Infelizmente ou felizmente, ainda não sei e penso sobre isso, D. Rosa teve um aborto após alguns dias, o que lhe causou profunda tristeza. Minha ação, simples, foi apenas tentar aproximar ela de seus dois filhos, e de verdade, ajudou.
Em 7 anos a patologia progrediu, acometeu o diafragma e musculatura pulmonar, levando D. Rosa de nós. Seus filhos enfim puderam ser crianças e o Sr. Cravo conseguiu tomar um banho sem ser incomodado após um árduo dia de serviço.  O amor não os deixou perceber a perda da infância, da individualidade, do ser marido e pai. Ao contrário, fez essas almas crescerem, evoluírem e serem como flores que por si só merecem admiração e cuidado.
D. Rosa me fez aprender que o importante não é a cura e sim a alegria de viver ao máximo o que se tem de melhor, a família, o amor, a espiritualidade, a amizade e o suspiro de vida.
Sr. Cravo passa bem, continua sendo um pai a agora também uma mãe dedicado. As crianças estão indo melhor na escola e agora entendem e reconhecem que a aquela criança grande, era a sua mãe.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Porque um blog?

       A criação deste canal de comunicação vem ao encontro da vontade de compartilhar a minha experiência médica na periferia da maior cidade do país.
        São estórias, que se tornam contos, fábulas e lições de vida. Que faz nós seres humanos pensar, refletir e na grande maioria das vezes agradecer.
        Quando estamos na graduação apenas nos preocupamos com a fisiologia, diagnóstico e tratamento da patologia em questão... na vida real de uma população carente as preocupações e danos são bem maior que a própria patologia.
         São seres humanos submetidos a um grande sofrimento diário, e a doença só é mais uma faceta deste enorme problema social.
         São recém natos por acidente, crianças criadas como bichos na rua, adolescentes escolhendo entre o árduo caminho da honestidade e o fácil do tráfico, adultos carentes e abnegados, cadeirantes sem cadeiras, idosos renegados e solitários...
         Acreditem diante desta atmosfera e fora do ambiente controlador dos hospitais, nós médicos também somos tocados, ora pelo sofrimento, ora pela alegria de que com tão pouco nós podemos fazer a diferença.
          Bem vindos ao mundo das patologias, dos doentes, da falta de recursos, do jeitinho brasileiro de fazer a diferença, de conquistas tanto de cura quanto de almas...